UX designer focada no mercado digital há 10 anos, sou apaixonada por tecnologia, processos, pessoas e arte. Tenho como objetivo criar boas experiências para todos, de forma ágil e escalável.
Já faz tempo que nós, designers, abraçamos o mundo, queremos não só estar envolvidos, mas liderar todas as etapas do processo e opinar em diversas áreas de conhecimento. O problema é que isso é inviável, não só pelo impacto no processo em si, mas porque passamos a embasar nossas soluções em áreas de conhecimento que outras especialidades dominam há décadas, fazendo as mesmas perguntas e com menos profundidade.
Para conseguirmos abranger todas essas áreas de conhecimento na solução, afunilamos o escopo da forma errada, afunilamos para quem a solução se destina e "automatizamos" algumas dessas escolhas. Paramos de pensar na adversidade e diversidade de contextos e acesso, e passamos a tomar decisões com base em alguns poucos números e padrões.
Não estou falando que devemos ignorar os dados, devemos usar dados sim! Na "era Google" é natural que busquemos ser data driven, só que esquecemos que não somos o Google e que o próprio Google ainda busca corrigir seus próprios vieses.
Devemos usar dados, mas aqueles que fornecem informação e hipóteses sólidas, os que não nos limitam e, principalmente, os que não limitam os nossos usuários, o que eles fazem e como eles têm que ser e acessar nossas soluções. Quando falamos especificamente sobre formas de acesso, o público PCD é um dos mais impactados e a utilização de dados se torna um desafio ainda maior.
Segundo o Censo de 2010, 24% da população brasileira possui algum tipo de deficiência. Tendo em vista que nossa tomada de decisão é baseada em dados, quando comecei a trabalhar com acessibilidade acreditei que esse número seria um fator determinante na priorização de um projeto focado em soluções acessíveis, mas um dos problemas que encontrei para fazer isso acontecer é o fato de não termos nenhuma métrica dentro das nossas empresas que envolvam pessoas com deficiência e forma de uso da tecnologia em si.
"Sempre me perguntam: "Nick, por que fazer meu website acessível? Não tem ninguém que acesse meu website que possua alguma deficiência. Não tem ninguém cego acessando o meu website."
E a minha resposta é sempre "como você sabe?""
( 2018, Nicolas Steenhout, consultor de acessibilidade)
Essa é a resposta de um especialista em acessibilidade há 20 anos, e essa é a resposta que usamos até hoje, porque a realidade é que não existe uma forma de saber se um usuário possui algum tipo de dificuldade de acesso a não ser perguntar diretamente para ele. Nós temos métricas de utilização de devices, abandono de funil, tempo de página, mas não sabemos de fato o motivo que leva o usuário a cada uma dessas decisões e acabamos criando hipóteses baseados em vieses que dificilmente incluem pessoas com deficiência, porque, apesar de serem ¼ da população, ainda possuímos equipes pouco diversas, e é aí que nossas escolhas baseadas em dados começam a parecer um pouco incoerentes.
Se cerca de 8% dos homens possuem algum tipo de daltonismo, uma das deficiências visuais mais comuns, isto quer dizer que mesmo sem marcação de "clientes daltônicos" na minha base eu devo inferir que 8% dos homens contidos nela possuem algum daltonismo. É uma certeza? Não, mas ao ignorar esse número quando desenhamos nossas soluções, estamos naturalmente segregando quem é o nosso público.
Como você sabe que parte do abandono daquele funil não é um problema de literal que você deve corrigir do formulário e sim um problema de contraste de labels?
Por que um faz mais sentido que o outro para se tornar a sua hipótese?
Por que criamos diversas personas com nossos dados de clientes e pesquisas com usuário, mas nenhuma delas possui algum tipo de deficiência mesmo sabendo que ¼ da nossa base pode ter alguma dificuldade de acesso?
Por que baseamos nossas decisões em números, mas 24% da população parece um número tão pequeno comparado a "2% do funil de conversão"?
O que determina a relevância de um número afinal?
Não há dúvidas que designers precisam estudar outras áreas de conhecimento para desenvolver seu potencial, e não há dúvidas que dados é uma delas, mas isso não deve nos fazer esquecer a origem do nosso trabalho ou conhecimentos que já estão no mercado há um tempo e que deixamos de desenvolver nas nossas soluções. Acessibilidade é um deles.
O problema é que quando aprendemos "tudo", não aprendemos com profundidade, e acessibilidade é um assunto que exige profundidade, seja de conceito, seja de atenção, pois é um assunto 100% relacionado a pessoas e como elas interagem (ou querem interagir) com a nossa solução. Acessibilidade é um assunto que envolve números assim como qualquer outro (mesmo que sejam números que decidimos ignorar), mas também envolve desenvolvimento de TI, Arquitetura da informação, UX, user research, entre outras áreas de conhecimento. Por conta disto, é um assunto que saiu do nosso dia a dia e está na mão de poucos especialistas no mercado brasileiro.
Uma vez que uma fonte de conhecimento é destinada apenas a especialistas, tende-se a crer que os problemas serão, em algum momento, solucionado por eles, mas a realidade é que este isolamento gera uma bola de neve, deixando este assunto cada vez mais longe do nosso dia a dia, cada vez mais longe das nossas conversas e, como consequência, o público PCD cada vez mais inexistente aos nossos olhos. Assim como em qualquer outra especialidade de design (data, por exemplo), os especialistas de acessibilidade estão aqui para desvendar e facilitar o tema, e nós, designers nas empresas, temos que consumir esse conhecimento e aplicar nos nossos projetos.
Mas como fazer a diferença aos poucos ou começar a trabalhar com acessibilidade em uma instituição que já possui um viés de valor com relação ao público PCD?
Comece pequeno!
Comece com coisas que estão ao seu alcance, "coisas de designer", coisas que pertencem tanto à nossa especialidade que dificilmente alguém irá questionar e que certamente dominamos os argumentos.
Crie personas com deficiência para fazer parte das suas discussões de escopo. De forma sutil, isso se torna uma provocação e uma representatividade na tomada de decisão.
Inclua boas práticas de acessibilidade na sua interface, como contraste, tamanho de fonte, escolha de elementos de baixa complexidade de uso, hierarquia da informação consistente, etc. Esse pequeno refinamento e atenção à qualidade do design já estaria incluindo pessoas daltônicas, com dislexia, com baixa visão e em alguns casos pessoas com deficiência motora, por exemplo.
Opte por elementos nativos para construir sua solução. É sempre bom criar coisas diferentes, mas a inovação vai além do layout. Elementos nativos são mais acessíveis por padrão, melhores interpretados por leitores de telas e, pela simplicidade de implementação, mais fáceis de defender com o time de tecnologia.
Que tal dar um passo à frente? Esteja próximo dos desenvolvedores. Especifique a forma em que os elementos e suas labels devem ser identificados e representados pelos leitores de tela, aos poucos eles irão incorporar esses detalhes nas soluções. Vocês irão se surpreender com como os desenvolvedores levantam a bandeira da experiência acessível até mais do que designers. Eu me surpreendi.
Teste a entrega final! Garanta que todos os detalhes que incluiu no seu conceito estão sendo aplicados e faça o QA de UI e de acessibilidade. Faça documentos formalizando os ajustes, filme a utilização do leitor de tela e dê exemplos. Além disso, existem ferramentas gratuitas que validam a semântica do código e podem direcionar o time a fazer o refinamento mais técnico (sério, cola no desenvolvedor!).
Por fim, mas não menos importante, foque em inovação, mas na inovação que soma, e não na que segrega. No caso de escolher uma função pouco inclusiva, ofereça mais de uma forma de interagir com a sua solução.
São formas de trabalhar que em teoria já poderiam estar acontecendo. Aos poucos, com uma visão segregada, passamos a ignorar boas práticas do design e o design universal, conceitos estabelecidos no mercado há décadas. Tiramos marcadores de foco por serem "feios", diminuímos fontes para caber mais conteúdo antes do scroll, criamos banners rotativos e piscantes para chamar atenção e entregar mais conteúdo em menos espaço, diminuímos a quantidade de conteúdo explicativo nas interfaces para ficarem mais "clean", entre outras práticas que passaram a fazer parte do nosso dia a dia e que ferem diretamente a acessibilidade e o bom design.
Estamos realmente desenvolvendo outras áreas e conhecimentos ou só aceitando novos argumentos para desenhar uma solução mais rápida e com menos qualidade? Temos que pensar no valor que o design entrega para a empresa sem esquecer o valor que entrega para os usuários, pois não existe o primeiro no longo prazo, sem o segundo. Temos que defender a acessibilidade e não acreditar que ela nos limita, mas a nossa falta de conhecimento técnico sobre o tema, isso sim nos limita. Se formos parar para pensar, grande parte das inovações e tendências têm como base a acessibilidade, mas nós as vemos como "inovação" porque elas facilitam o NOSSO acesso. Alexa, IA das redes sociais, controles por voz, robôs, veículos autônomos, realidade aumentada, a própria acessibilidade e diversidade são uma tendências por si só.
"A diversidade humana é a base da inovação disruptiva."
(2020, Frances West)
Precisamos integrar estes conceitos, precisamos somar esses conhecimentos novos aos antigos da nossa especialidade, voltar a fazer as perguntas difíceis que nenhum número dos nossos dashboards conseguirão nos responder.
Quem são meus clientes? + Por quê?
Quem não é meu cliente? + O que eu posso fazer diferente para diversificar a minha base?
Quanto ganham? + Quais seus objetivos de vida?
Qual o histórico de consumo? + Qual a sua história?
Qual a familiaridade que possuem com o meu segmento? + Como posso ensiná-los?
Quantas vezes compraram na minha loja no último mês? + Por que consomem dessa forma?
Por que abandonam o funil? + Existe algum problema de acesso?
Até agora, a tendência do design foi tentar se integrar aos novos processos e ao negócio da empresa com objetivo de ganhar escala nas soluções. Agora, principalmente com a pandemia e o aumento do uso das soluções digitais, a tendência é voltar a ter como objetivo integrar pessoas a essas soluções, e quando digo pessoas, considere todas as pessoas. Então vamos aproveitar esse momento para retomar e aplicar conhecimentos antigos, mostrar que o design faz sim parte do negócio e que o melhor para o negócio é ter a diversidade como público.
"Se acreditarmos que estamos entrando no mundo da tecnologia centrada no ser humano, onde o humano e a máquina se unirão, isso significa que todo o pensamento sobre a inclusão é mais do que apenas um "tópico humano" e deve ser equilibrado com a tecnologia."
(2018, Frances West)