Eu ajudo times a conectar ideias e a desenhar experiências para produtos que entreguem valor para a vida e o dia a dia das pessoas. Product Design Manager no iFood
Esse ano não foi fácil.
É difícil falar de 2020 sem fazer uma retrospectiva que foi tão turbulenta e, ao mesmo tempo, com tão pouco movimento. Eu costumava fazer viagens semanais para Campinas, onde temos outra sede do iFood, e me lembro de, em uma destas ocasiões, concordar um pouco descrente em não ir aos escritórios por conta da pandemia. Lembro-me também, na época, de acompanhar diariamente este painel bem didático (e um tanto quanto assustador) do centro de pesquisa:
Fomos impactados com um princípio básico de matemática para compreender a gravidade e velocidade do contágio do vírus: o conceito da curva exponencial — que veio junto de uma didática simples, porém pragmática, sobre como “achatar a curva” (aqui, exemplo tirado do New York times):
Para começar, ao falar de hábitos de consumo, por razões de distanciamento social, nossa vida de compras migrou quase que instantaneamente para o delivery. Dados da Exame explicam um pouco esse panorama digno de nota:
O levantamento dividiu as compras em três períodos: 15 de fevereiro a 15 de março (30 dias antes da quarentena); 16 de março a 15 de abril (30 primeiros dias da quarentena); e 16 de abril a 15 de maio (segundo mês de quarentena).
Entre o primeiro e o terceiro período, os gastos com restaurante caíram 31%; 47% com transporte; 37% com combustível e 74% com hospedagem. Na outra ponta, os gastos em estabelecimentos online subiram 62%; enquanto em supermercados o avanço foi de 29%.
Já quando avaliado especificamente gastos em aplicativos, houve um avanço significativo em apps de delivery (173%); e-commerces em geral (278%) e streaming (41%). Já gastos com aplicativos de transportes caíram 48%, enquanto que em redes físicas de fast food, o recuo foi de 64%.
Com academias fechadas, bares e toda a nossa rotina de entretenimento outdoor resumida na área comum do prédio ou no quintal da casa (isso para quem possui os privilégios de manter o isolamento social), houve também aumento assombroso não somente da compra online, mas do uso da tecnologia na rotina digital.
Apesar de não serem mais novidade, é relevante mencionar pesquisas como a conduzida pela consultoria Kantar, que demarcam, por exemplo, aumento de 40% no uso dos aplicativos Instagram e Whatsapp durante o período inicial de quarentena. Outros dados também trazem essa intensificação digital, como o número de lives, que duplicou em semanas, com conteúdo que passou a ser, além de entretenimento, fonte de informação.
Um fenômeno que reflete tal topografia é também o de como mudamos, com os TikTokers, nossa forma de consumir e gerar conteúdo. Além da valorização, o aplicativo se tornou o mais baixado do mundo durante o primeiro trimestre de 2020, de acordo com o App Annie, com a marca de 2 bilhões de downloads. Sim. Bizarro.
Outro aspecto que sofreu revolução foi o profissional. No trabalho, as agendas ficaram insanas do dia pra noite. Foi o início de uma batalha sem fim para organizar a vida e entender, dentre muitas outras questões, o que precisava ser uma reunião e o que poderia ter sido um alinhamento assíncrono de Slack, por exemplo. Este post incrível do designer José Torre — sobre como criar uma rotina diária que permita o respiro (ou idas ao banheiro) — dá uma clareza sobre o ano pitoresco que tivemos “dentro” das empresas.
Com todos estes temas, onde quero chegar?
Minha conclusão é a de que tivemos um excesso de cultura digital, de influência de novas tecnologias, de novas interações, que mudaram significativamente a forma como fazemos internet e interagimos com o mundo — e que, como designer, é natural o exercício de tentar compreender como isso pode se desdobrar sobre nós, nossos pares e o mundo em que atuamos.
Com o uso intensivo de tecnologia no dia a dia, para tarefas que antes eram físicas e também para entretenimento, tivemos um avanço na curva de aprendizado mundial. De acordo com uma pesquisa realizada pela McKinsey, avançamos uns bons anos:
Isso significa que o uso de interações elaboradas e da intuitividade na descoberta de novos produtos se tornaram assuntos triviais, independentemente da faixa etária — graças ao uso insistente e crescente durante a quarentena de produtos como TikTok, Instagram, Spotify, Youtube, dentre outros.
Isso pode mudar muito a forma como desenvolvemos essas interações, uma vez que nosso público mundial se qualificou em alguns steps para a inserção da tecnologia no dia a dia. É intrigante tentar imaginar quais serão os novos produtos e interações que se formarão após esse período, com usuários que estão cada vez mais qualificados.
Difícil imaginar aquela cena de happy hour não ser puxada por um Gartic na sequência. Se estamos todos à distância, sem oportunidade de diversão e interação físicas, o jogo fez as vezes da carta de baralho presencial e gera muitas risadas entre amigos. O game cresceu mais de 1600% somente no início da quarentena — e é só um minúsculo exemplo de como o mundo dos games foi fomentado durante a pandemia.
Foram abertas as cabeças de vários novos usuários e o mercado de games deu uma expandida natural de público. Entediadas em casa, quantas foram as pessoas que se renderam à tentação? Levantamento da consultoria NPD Group mostrou que, somente nos Estados Unidos, o consumo de jogos gerou US$ 10,6 bilhões em receitas, incremento de 9% em relação ao mesmo período de 2019. O ano de 2020 foi possivelmente só uma pontinha do que ainda vamos ver surgir nesse "novo" mercado.
Somos privilegiados como designers de viver neste novo mundo e de ter a oportunidade de desenhar as experiências do futuro. Com espaços e relações cada vez menos óbvios, empresas estão apostando em como aproveitar o momento para redesenhar experiências e criar novos serviços. O design toma uma cadeira holística nesse momento e se relaciona com várias outras disciplinas, para a expansão da visão e da criatividade.
Se tantas possibilidades de diversão estão limitadas (festivais, teatro, parques, cinema, música ao vivo e até a mesa do bar com amigos), quais são as oportunidades para criação de experiências “físicas à distância”? Como podemos inspirar as pessoas neste sentido? O Airbnb por exemplo, surfando a onda disruptiva, contratou Jony Ive, antigo Chief Design Officer na Apple, para abordar questões sobre como o mundo se comporta hoje e a partir de hoje. Ele é criador da Lovefrom, que tem no seu quadro designers, arquitetos, músicos, escritores, engenheiros e artistas trabalhando em conjunto, para este novo momento em que as pessoas estão sedentas por conexão, tanto pessoal quanto cerebral.
Deste modo, devemos ter mais espaço para pensar com sensibilidade sobre a experiência que o design proporciona, inserido na nova realidade. Existe uma sede por interações que não somente resolvam problemas banais no dia a dia, mas que de fato gerem valor na vida das pessoas.
Dentro desse espaço, como produtos do mundo inteiro vão se transformar para se conectarem de uma forma mais genuína com as pessoas?
Um tempo trancado em casa no faz exercitar o olhar para o detalhe. O que está lá e ainda não foi visto? Quais são todas as possibilidades?
Com a exposição aumentada de todos a cursos de DIY e a fazer pessoalmente tarefas que antes eram delegados a outras pessoas, restou nós mesmos darmos cabo ao que é necessário dentro de casa. Afinal de contas, isso ainda se configura como um excelente passatempo.
Incontáveis foram os amigos postando receitas de pão. Ou buscando comércio pequenos e locais em substituição a grandes marcas. Temos um olhar renovado para o Craft — e esta valorização pode trazer várias novas marcas, mais responsáveis e mais atentas à arte do fazer. E não só isso, vivemos um resgate ao manual, que se torna um alívio para a ansiedade do isolamento. Esse texto da Atlantic discute um pouco mais sobre o tema.
O uso excessivo da tecnologia durante todo este pitoresco momento da humanidade nos leva para uma reflexão contrária. Precisamos criar produtos que facilitem, estimulem e conectem a vida das pessoas, mas que, principalmente, não as façam adoecer psicologicamente.
Conectar com o mundo externo, por mais bizarro que isso pareça agora, ainda significa criar espaço para laços reais entre as pessoas com a natureza, com sua família e amigos, com a sua própria casa e espaço. Mas nem todas as marcas estimulam isso integralmente. Existe uma horda de produtos construídos a partir de gatilhos negativos, como descreve o modelo Hook — e maratonar Netflix pode ser uma soma de experiência positivas, mas, também, pode despertar alguns gatilhos de culpa. Tudo depende da frequência, do contexto.
Como designers temos a responsabilidade de entender essas linhas tênues e de preencher o dia a dia das pessoas com valor e inspiração, mas sem nunca deixar de atentar aos limites da ética, da liberdade individual e do bom senso