Andrei Gurgel é Designer com mais de 20 anos de experiência criando produtos digitais. Interesse em abordagens Participativas do Design, colaboração e cocriação. Nos últimos, tem trabalhado remotamente na condução de times distribuídos de Design e Desenvolvimento em projetos no Brasil, Estados Unidos e Canadá. Criou o Xlab em 2016 para debater sobre o Design no YouTube e em outras plataformas.
Este é um artigo sobre desobediências no Design, que aparecem na forma de questionamentos a conceitos estabelecidos. À norma qualquer questionamento é uma desobediência mal-vinda. Assim, consciente dos riscos que um ato desobediente acarreta, ele vem a público. A desobediência convicta já não se importa com isso. Sabe que a norma não resiste a meia dúzia de perguntas. Questionar é um primeiro passo da desobediência, porque não é o que se espera de uma relação de imposição e de normatização. Diante de padronizações, o que os seus criadores esperam dos demais é passividade. Por isso, este artigo não tem a intenção de trazer respostas, mas sim, perguntas. Várias delas. Desta forma, não haverá aqui tentativas de reforçar normas, mas sim, colaborar com o seu desmonte, para que juntos a gente tente criar novas relações para o Design, e que sejam mais significativas a todos/as/xs nós.
Quando a escritora, teórica, psicóloga, psicanalista e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba escreveu o seu livro, Memórias da Plantação (2019), ela realizou uma compilação de episódios cotidianos sobre racismo e sua naturalização estabelecida, demonstrando os mecanismos aos quais milhões de pessoas como ela – mulher negra - são constantemente e institucionalmente submetidas. Sua intenção foi a de expor e questionar de forma contundente estes fatos e analisar o trauma resultado deste processo nas vidas dessas pessoas. Para demonstrar a dimensão de sua análise, porém, a autora desobedeceu a norma acadêmica de pesquisa estabelecida estruturando sua obra a partir do depoimento de apenas duas mulheres - não foram cinco, nem cinco mil – foram duas. Para Grada, isso era mais que suficiente para que ela pudesse embasar sua obra e demonstrar as estruturas que ela tinha a intenção de expor, referente às construções racistas e sexistas, bem como as consequências psicológicas e comportamentais resultantes. Grada sabia que estava desafiando a norma, e ela mesma aponta as consequências de suas transgressões:
Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Grada Kilomba
Quem pode falar? Questiona Grada. Para ela, tais comentários à validade do seu trabalho funcionam como uma máscara de silêncio, como se o seu conhecimento fosse incompatível com a norma estabelecida e, portanto, inválido, menor, não digno de atenção.
Inspirado pela força que o texto da Grada carrega, me pergunto: Quem pode falar sobre Design? Quem está autorizado a determinar conceitos e prescrever soluções? Quem estabelece o que é belo e harmônico? Quem aponta os processos que devemos seguir para sermos bons designers? Embora todas estas questões trazidas por Grada descrevam contextos muito mais profundos e graves, que em nenhuma proporção comportaria aqui comparações, percebo que a mesma lógica de construção de saberes recaem sobre o Design.
Será que no Design também convivemos com normas e padrões similarmente estabelecidos e impostos em larga escala? A normalidade do Design. Normas estas que contam com a nossa obediência para continuarem sendo propagadas? Que se apoiam na nossa colaboração obediente de difusão e aceitação? Por que tomamos certos fatos como verdades estabelecidas sem questionarmos? Por que assimilamos construções comportamentais, procedurais, metodológicas, mercadológicas e estéticas no Design de forma tão passiva? Em uma recente participação em debate sobre Design e perspectivas da negritude, Robson Santos (2020) se questionava sobre as nossas referências hegemônicas e dominantes, levantando questões sobre o porquê do estilo minimalista ser tão referenciado num país como o Brasil, tão claramente maximalista, nas suas palavras.
É sobre todas estas questões que eu queria refletir (desobedecer) com quem estiver lendo este artigo neste momento. Acredito que por meio do questionamento e senso crítico, podemos desmontar conceitos impostos por vias de privilégios e opressões, extrair o que fizer sentido aos nossos contextos, para então remontá-los com mais significado a todos/as/xs.
Para mim, um dos conceitos mais evidentes da relação de obediência aos padrões impostos no Design, aos quais estamos todos submetidos, é o da construção da relação projetual Designers/Usuários, que embasa boa parte da compreensão do que é e o que faz o Designer, e por consequência, todos os conceitos que são desdobrados a partir dessa relação.
Alguns meses atrás eu decidi renomear o meu projeto UXlab (que é formado por um canal de YouTube, Podcasts e canal de Discord), voltado à discussão de temas relacionados ao Design, para Xlab, retirando o termo usuário de seu nome.
A minha principal motivação foi e de alinhar este projeto à minha convicção de que o trabalho fruto de um projeto de Design não está relacionado unicamente às pessoas que utilizam os produtos que criamos – os usuários. Sabemos que há diversos outros atores humanos envolvidos nesta relação. Por que eles são sistematicamente ignorados? Começando pelos administradores desses artefatos, aquelas pessoas que em alguma escala contribuem nos bastidores para que determinada solução seja operacionalizada. E as pessoas que sequer utilizam as soluções criadas, mas que mesmo assim são impactadas de alguma forma por elas. Muitas delas são afetadas apenas porque uma solução que antes não existia, passa a existir. Todas estas pessoas também não deveriam ser consideradas?
Sem mencionar o meio ambiente, seus recursos limitados e os outros seres vivos. O que fazemos não tem a potencial capacidade de prejudicar este sistema em que todas as pessoas e outros seres vivos coexistem? Por que esse pensamento é tão pouco mencionado? Por que não nos dizem que devemos considerá-los, repará-los? Definitivamente, o termo usuário está longe de abarcar estes conceitos essenciais para o pensamento sistêmico tão necessário ao Design.
Usuário é por si só um conceito limitante. Na interpretação normatizada os usuários são vítimas de uma situação, incapazes de realizarem suas perspectivas e consequentemente conceberem soluções. Nesta relação, usuários são aqueles que servem aos designers relatando ou demonstrando seus problemas, suas possíveis frustrações, numa via de mão única. Ainda segundo a relação normatizada são os designers, e apenas eles, que possuidores dos talentos especiais, percepções e capacidades projetuais, estão autorizados a prescreverem soluções aos segundos. Neste arranjo, uma clara relação de hierarquia de saberes se estabelece.
É possível ir mais longe e refletir que no idioma português o usuário é um termo que remete ao gênero masculino. Ninguém fala das usuárias. Pessoas do gênero feminino não estariam sendo subliminarmente desconsideradas de um projeto? E quanto ao termo user, a respeito do qual tanto lemos na literatura internacional, será que carrega os contextos e vivências de um pessoa que vive, por exemplo, longe dos centros, nas periferias do Brasil?
A normalidade do Design, numa aparente tentativa de se apropriar desses questionamentos e se adaptar, passou a referir-se aos usuários como humanos, e por vezes como pessoas. Desta forma, abordagens de design que são apresentadas nas configurações de centralizações em torno do rótulo usuário, tais como, Design Centrado no Usuário (DCU ou UCD de User-Centered Design), Design Centrado no Ser Humano (DCH ou HCD de Human-Centered Design) ou todas as suas variações, estão sempre se referindo a mesma seleção limitada as quais estamos argumentando.
Em seu artigo publicado no ano passado para esta coleção inaugural de textos – o Design 2020 - Karen Santos (2019) descreve as diversas soluções de Design criadas com vieses racistas. Com precisão a autora questiona se a definição de humano contempla pessoas negras, já que por séculos esta condição vem lhes sendo negada.
“Eu costumo fazer a seguinte pergunta em algumas falas: se a tecnologia está se tornando centrada no ser humano, como o “ser humano” está sendo definido?” – Karen Santos
É por isso que um pensamento um pouco mais ampliado em relação aquele que orbita ao redor do termo usuário lança perguntas também sobre conceitos que se desdobram a partir desta compreensão. Talvez o mais popular destes seja o conceito de UX (Acrônimo de User Experience ou Experiência do Usuário). Se estamos transgredindo a compressão que nos foi imposta sobre o termo usuário, também precisamos considerar que a Experiência evocada por um artefato fruto de um projeto de Design não é apenas relacionada aos seus Usuários – ou, aos utilizadores diretos de uma solução – mas também precisam igualmente ser consideradas as experiência dos não-usuários, das experiência sistêmicas, materiais e imateriais e suas interconexões.
É o entendimento das interconexões de experiências o que torna possível falarmos sobre conceitos de Design Reparador – aquele que tem o objetivo de reverter os danos sistêmicos complexos criados pelos modelos tradicionais de projetos, sejam ao meio ambiente, a diferentes seres, a grupos anteriormente desconsiderados das soluções criadas, abrindo espaço para o que o Designer Pesquisador Caio Vassão (2020) chama de Inovação Regenerativa e um novo modelo econômico que os contemple.
E para você, que chegou até aqui, eu reservei as últimas perguntas deste artigo. Aquelas que eu mesmo seguirei refletindo em 2021: Como o Design e os artefatos que temos colaborado a conceber alteram essa rede interconectada de pessoas, seres e ambientes ao nosso redor? Para enfrentar os desafios que se apresentam à nossa frente, é necessário que elaboremos uma forma diferente de pensar Design, que contraponha a norma usuário, que contemple a diversidade, os diferentes atores e contextos envolvidos. Este é um ato de desobediência que eu te convido a participar.
Referências
GURGEL, A. Xlab - Olá todos, todas e todes. Medium, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 Novembro 2020.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. [S.l.]: Cobogó, 2019.
SANTOS, K. Design 2020. Vieses racistas: como combatê-los no design, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 29 Novembro 2020.
SANTOS, R. VIVA DESIGN - Design Decolonial: cenários e perspectivas da negritude. 1 Video (135 min). Publicado no canal CESAR School, 2020. Disponível em: <https://youtu.be/viZpoA1-Izc>. Acesso em: 28 Novembro 2020.
VASSÃO, C. A economia pós-industrial. The Funnel, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 Novembro 2020.
________, Novo ciclo global de inovação. The Funnel, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 Novembro 2020.