Nascido em Santo André/SP, filho de mãe solteira, de família nordestina, líder do time de research & business design no iti Itaú, criador de conteúdo no canal Design Preto e mentor na comunidade PretUX. Sou gay, negro e de ascendência indígena. Atuo há 10 anos com design e serviços digitais.
Acho justo que, antes de você começar a ler esse texto, eu deva te alertar que meu objetivo aqui não é trazer respostas, mas estimular reflexão e gerar diálogos. Abrir um pensamento crítico sobre a forma como lidamos com o design e seu impacto hoje. Então, dados os devidos alertas, conta aqui pra mim: você acha que, quanto comunidade, nós compreendemos, de fato, o papel social que exercemos ao construir um produto digital e lançá-lo no mundo? Eu acredito que ainda não. E ouso dizer que estamos até um pouco distantes dessa realidade. Sinto que nossa comunidade ainda limita-se a percorrer ambientes confortáveis do design. Estamos presos nos nossos casulos de discussões técnicas e instrumentalistas, que apesar de serem desafiadoras e necessárias, acabam por não estimular o questionamento para além do que é mais tático no design, limitando assim, nosso potencial de transformação.
Quando falamos sobre como operacionalizar as atividades do design nas organizações com mais frequência do que trazemos debates sobre como a nossa disciplina tem sido responsável pela manutenção de desigualdades, percebemos que nossa comunidade ainda engatinha quanto a compreensão de sua potência e responsabilidade social.
Significa que as pautas técnicas e instrumentalistas não sejam importantes para a evolução do nosso campo de estudo? Jamais! São de extrema importância para alcançarmos maestria quanto disciplina, mas não são elas que levarão o design a novos rumos e patamares. Porque quando apenas discutimos o "como fazer", estimulamos pensamentos mecanicistas de execução que nos impedem de questionar as estruturas do dia a dia. Deixamos de lado nosso pensamento crítico e filosófico para nos tornarmos ótimos executores de técnica impecável, mas que não compreendem a responsabilidade de seu papel social em um mundo complexo e ambíguo.
Entender esse papel, é fundamental para compreendermos, questionarmos e mexermos nas estruturas da nossa sociedade a partir das abordagens transformadoras do design. Mas esse entendimento exige um deslocamento à uma posição de desconforto, expandindo nosso discurso para além do ferramental, a um nível de entendimento filosófico do design que questiona as suas próprias estruturas e mentalidade e puxa responsabilidades para si.
Então, te faço um convite para vir comigo nessa jornada de diálogo e pensamento crítico da nossa disciplina. Aqui, inicio essa jornada com você já por um tópico perigoso que, de primeira vista, parece não ter relação com o design, mas infelizmente, guia grande parte dos nossos processos decisórios no design de produtos: a colonialidade.
Na verdade, a compreensão da problemática da colonialidade é uma discussão bem árida que exige mais tempo do que um artigo curto. Então, nesse momento, vamos nos ater a entender que a base da colonialidade é a exploração, domínio e conflito como forma de exercer o poder, controle e autoridade sobre determinados povos, e que mesmo após o fim do colonialismo com as independências nacionais das colônias, ainda mantém traços e formas de racionalizar e organizar o mundo, mesmo que inconscientemente, vindas desse sistema que permanecem até hoje no imaginário coletivo do povo, principalmente nas estruturas de negócio dos produtos que estamos construindo na atualidade. Um desses traços da colonialidade que tratarei, especificamente, neste artigo, é a lógica de mundo neutra e universal. Ela é um dos instrumentos fundamentais de poder da colonialidade, e responsável pela criação de dinâmicas de poder e subjugação de povos que perduram até hoje, e tem grande impacto no processo de design de produtos digitais. Mas primeiro, vamos entender o papel dela na colonização e depois fazemos os paralelos com o design, pode ser?
Essa lógica parte do pressuposto de que o jeito de viver e estar do europeu era um "modelo a ser vivido", portanto universal. A ideia de que ele estaria no ápice do desenvolvimento civilizatório, político, cultural e religioso, fez com que se posicionasse como uma classe dominante mais desenvolvida e próxima da racionalidade, tornando-o mais "humano". Então, todo povo que não seguisse esse mesmo modelo europeu de civilização, era considerado primitivo, menos humano e, portanto, podendo ser explorado e dominado. Ou seja, a lógica europeia era: se o meu modelo é neutro e universal, eu posso impô-lo a essa civilização "primitiva".
“A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível.” trecho do livro Ideias para adiar o fim do mundo de Ailton Krenak.
Na colonização, os europeus, além de exercerem dominância sobre o território e povos originários latinoamericanos, apagaram suas identidades culturais e históricas, impondo ao nosso povo a sua lógica universal: seus hábitos, costumes, leis, cultura, religião e política. Uma percepção europeia distorcida de que estavam resolvendo problemas e trazendo desenvolvimento civilizatório para as colônias, mas que na realidade foi um processo violento de apagamento epistemológico, cultural e histórico. A lógica de mundo neutra e universal é tão perigosa que nos leva a entender que a nossa forma de ver o mundo é a única válida, e aquilo que difere dela são apenas pontos de vista ou objetos de estudo. A partir do momento que acreditamos em uma lógica universal, nos fechamos para outras possibilidades de construção de mundo e nos vemos no direito de impô-la a outrem, acreditando estar fazendo o melhor a esse outro indivíduo. E aí, já conseguiu fazer algum paralelo com design de produto?
Nós temos o hábito de atribuir ao designer o papel de um ser superior iluminado que vai salvar e solucionar todos os problemas de uma população. Cá entre nós, o quanto essa mentalidade não é colonizadora? Já parou pra pensar em quantas vezes nós nos distanciamos dos nossos clientes e os tratamos como objetos de estudo, os afastando da humanidade? A dor que tentamos sanar é real para o cliente ou é a dor que nós teríamos estando na pele dele? Será que nosso processo de design tem sido apenas o resultado da nossa incapacidade de entendermos realidades que não sejam as nossas? Será que, no fim, estamos projetando as nossas realidades e a nossa forma de viver no nosso cliente, acreditando estarmos sanando suas dores? E se, na verdade, estivermos impondo a nossa lógica neutra e universal e estilo de vida a uma população, fantasiando-a de solução?
“Como assim você não assina Netflix, Amazon Prime, Disney+, Globoplay e HBOGo? Como assim você não tem Spotify Premium? Como você vive sem ter conta em banco? Como assim você exclui aplicativos por não ter espaço no celular?” questionamentos fictícios de designers quando encaram as realidades fora de suas bolhas de privilégio.
Será que, por meio do design, estamos invadindo e apagando culturas, conhecimentos e territórios? Será que estamos construindo soluções pontuais para problemas sistêmicos e ignorando as consequências negativas que essas soluções possam estar trazendo para o indivíduo ou para a sociedade? Será que estamos criando produtos justos que promovem igualdade de oportunidades ou estamos sendo protagonistas na perpetuação e manutenção de desigualdades, incentivando a exploração, dominação e conflito de povos marginalizados e estigamatizados?
É importante que entendamos que se nós não levarmos em consideração o impacto daquilo que fazemos, podemos estar perpetuando dinâmicas de colonização e criando padrões de opressão. Até quando vamos ignorar que os produtos que estamos construindo estão lucrando em cima da desigualdade? Até quando faremos da exploração e exclusão, experiências fluídas e amigáveis?